Por Primo Jonas
Do outro lado do espelho
Javier Milei, que acaba de ser o candidato mais votado das PASO argentinas (Primarias Abiertas Simultáneas Obligatorias, uma espécie de eleições primárias de todos os partidos, com o detalhe de serem obrigatórias e realizadas pelo Estado), é sem dúvidas um personagem bizarro. Mais bizarro que Trump, mais bizarro que Bolsonaro.
Pouco menos de dois meses antes desta votação, Juan Luiz González publicou “El loco. La vida desconocida de Javier Milei y su irrupción en la política argentina”, uma biografia do candidato onde muitos rumores foram confirmados. A pesquisa não foi difícil. Acontece que Milei era um ilustre desconhecido antes do governo Macri (2016-2019). Começou a ser chamado a diversos programas televisivos por dois motivos: com seu cabelo e sua performance exagerada, era uma espécie de bobo da corte, apto para a mistura entre política e humor tão em voga em nossos dias. Por outro lado, seu discurso ia contra o gradualismo do governo, que pretendia liberalizar a economia argentina de forma paulatina. Para Milei, “eram todos keynesianos”, “todos os políticos são ladrões”, “Macri é socialista”, opiniões que se formalizadas em termos sérios dariam pouco rating. Sua presença na televisão tinha o objetivo de pressionar pela direita as medidas econômicas do governo Macri.
Acontece que nesta época Milei ainda não era candidato a nada, e se deslumbrava com a atenção das câmeras. Foi assim que ele mesmo pôde dar pistas de algumas excentricidades suas. Como por exemplo sua aversão ao ato sexual. O fato de ter pagado muito dinheiro por um serviço para clonar seu falecido cachorro Conan. E na medida em que se transformou em candidato, não abandonou completamente seu passado. Perguntado sobre quem seria a primeira dama caso fosse eleito presidente, não vacilou em responder “minha irmã”, e no discurso triunfal das PASO dedicou a vitória aos seus “filhos de quatro patas”. O livro de Juan Luiz González revela que Milei chegou a contratar os serviços de uma “médium canina”, para poder comunicar-se com Conan, e assim receber de seu antigo pet a missão de ser presidente da Argentina. O misticismo de Milei também o aproximou do judaísmo, que em termos de realpolitik o faz repetir a fórmula de transferir a embaixada argentina em Israel a Jerusalém.
Do lado de cá
Mas talvez Milei não pareça um personagem tão bizarro, se o comparamos com a economia argentina. Bizarra é uma economia com uma lista de mais de 10 cotizações do dólar, com nomes como “Dolar Coldplay”, “Dolar Catar”, “Dolar MEP”, “Dolar Cripto”. Bizarro é que no mesmo dia em que ocorre uma desvalorização cambial, o pão feito com trigo nacional fique imediatamente mais caro. Basta ir a um supermercado para ver que o sistema de preços no país está disfuncional.
A população argentina teve recentemente a experiência de um governo da aliança Juntos por el Cambio, com Macri na presidência. Foi o auge do anti-kirchnerismo, mas também o resultado da falta de um candidato forte nas listas peronistas. A grande maioria se frustrou com essa experiência e o mandato foi terminado ao som de muitos eleitores dizendo “eu votei nele não porque eu goste dele”. Macri ganhou as eleições com uma campanha enfocada na “Revolução da Alegria”, uma proposta de otimismo cidadão tecnocrático, que funcionou tão somente para polarizar contra todo o peso histórico já envelhecido do peronismo, dos bombos sindicais, da política da paixão e do personalismo kirchnerista.
Veio o governo de Alberto Fernandez e em menos de 6 meses estava instalada a quarentena. Como se fosse pouco, não lhe ocorreu melhor ideia a Cristina Kirchner que fingir que não era vice-presidente e criticar “o governo”, para distanciar-se dos danos políticos de gestionar a pandemia. Não se limitou a criticar, senão que promoveu fritura e boicote aberto ao próprio ministro da Economia. Os resultados econômicos ruins e as facadas pelas costas no grupo dirigente desmilinguiram lentamente o kirchnerismo, e o resultado foi que chegaram às eleições sem a menor chance sequer de disputá-las com candidatos competitivos. O desenlace, ainda no ano passado, foi a convocação de Sergio Massa, antes visto como a direita abominável dentro do peronismo (direita mais pragmática do que ideológica), para ser “super-ministro” de Economia, com carta branca para o que fosse. E a conclusão lógica, no movimento peronista: candidato de unidade para as eleições.
Assim, há sinais de que estamos vivendo o fim do kirchnerismo como grupo dirigente na sociedade argentina. É possível inclusive que o próprio peronismo esteja também se despedindo da posição dirigente, acomodando-se, como na época da Resistência, em setores sindicais, ou terminando de se diluir em um progressismo genérico. Um futuro parecido pode ocorrer com Juntos por el Cambio, com um setor de direita pegando carona no fenômeno Milei (encabeçada pela candidata Bullrich) e outro buscando posicionar-se ao centro (encabeçados pelo derrotado Larreta).
O espelho
O erro da quase totalidade das empresas de pesquisa eleitoral, dos jornalistas, dos próprios partidos, até o de Milei!, a respeito dos resultados esperados para as eleições, não é novidade. Também em 2019 as PASO mostraram uma grande diferença de votos entre Alberto e Macri que ninguém esperava. A grande novidade para o cenário argentino é a existência de uma “terceira força”. Quem previu corretamente isso foi Cristina Kirchner, que se bem já não pode ostentar a imagem de uma “enxadrista genial”, ainda preserva argúcia política.
Os oponentes históricos do peronismo foram os radicais, da UCR (Unión Cívica Radical). Primeiro partido popular da república, a UCR nunca teve uma linha ideológica muito firme, balançando ao gosto do vento. Oficialmente o partido integra a aliança Juntos por el Cambio, mas existem não poucos grupos do partido que se aliam ao kirchnerismo. Após a última ditadura, a grande rivalidade foi entre Alfonsín e Menem.
E falando em rivalidades históricas argentinas, outro dado importante: Milei foi o candidato mais votado na maioria das províncias, de norte a sul. Não ganhou naquelas províncias com maior número de empregos públicos (onde ganhou o peronismo) e na Capital Federal. A história da república argentina é atravessada pela inimizade entre “unitários” e “federais”. Os primeiros representam a autoridade do porto, de Buenos Aires, os segundos representam os interesses dos caudilhos provincianos. Pois bem, um dos fenômenos que havia afastado a atenção sobre os votantes de Milei foram as eleições provinciais, com calendário próprio, onde os candidatos apoiados por Milei tiveram resultados pífios. A eleição de governadores sempre foi uma forma de medir o pulso político do país, também pelo peso executivo destes cargos no resultado final de uma gestão presidencial.
Mas a lógica caudilhesca justamente debilita a questão ideológica. Se bem os governadores são responsáveis por “cuidar dos seus”, não são eles quem dão as cartas nos assuntos econômicos do país. Milei não conseguiu, por torpeza e falta de tempo, armar seu próprio aparelho e alianças firmes na maioria das províncias. Mas quando realizava campanhas pelas ruas das capitais, atraía de forma espontânea a muitos, principalmente jovens. Milei parece ter conseguido atrair o público relegado dos grandes aparelhos políticos do país, de acordo com o antropólogo Pablo Semán. Enquanto o kirchnerismo e boa parte da esquerda pensavam que o povo são as organizações sociais que lutam para defender seus planos de assistência social, a grande maioria que não se encaixa nesses parâmetros parece ter encontrado alguém que se dirige a eles.
Ainda é cedo para dizer que Milei ganhará as eleições. O retrato das PASO nos indica apenas algumas impressões e tendências. Ocaso do kirchnerismo e em menor medida do peronismo. Uma nova configuração de forças políticas no país, com maiores dificuldades de formar maiorias nas casas legislativas. Um setor da classe trabalhadora distante do Estado e das forças políticas tradicionais que parece ter encontrado um candidato para chamar de seu.
Parte da esquerda já começou a bradar o discurso do “inferno que virá”. Mas para uma crescente parte da população, o inferno se vive já hoje. De um lado estão os bombeiros, do outro o candidato que pretende terminar de destruir o edifício em chamas. Ainda não está claro nem se ele terá força e capacidade para levar a cabo essa missão, nem como reagirão os seus próprios votantes.
Por que quando o sistema econômico e político do liberalismo entram em crise é a direita quem ganha adeptos e a esquerda os perde? É assim em todo o mundo. Isso deveria ser objeto de reflexão, mas preferem ficar chamando todo mundo de fascista e clamando pela defesa do status quo.
Paulo Henrique, eu não escolheria a Argentina como bom exemplo do sistema econômico e político do liberalismo. De fato, se trata de um país que nunca teve um partido liberal expressivo. O mais próximo talvez tenha sido a UCR no começo do século XX, e há menos de 20 anos que a aliança Juntos por el Cambio tenta preencher de alguma forma esse lugar vazio. O resultado, no entanto, foi tão ruim (econômico e político), que Milei pode se insurgir como um “verdadeiro liberal”. Esta roupagem serve muito bem ao papel “rupturista”, se tomamos em consideração que o programa neoliberal dos anos 90 foi realizado com uma condução peronista.
E justamente, diversos economistas que formularam as medidas econômicas do governo Menem estão integrando a equipe de Milei. Já não necessitarão do lastro político de uma dirigência peronista.
SITUAÇÃO CONTRARREVOLUCIONÁRIA?
Ora, “ficar chamando todo mundo de fascista e clamando pela defesa do status quo” é meramente tentar ganhar (ou não perder) adeptos. É como a esquerda do capital tenta capitalizar os efeitos da ‘crise’ e contribui, assim, para desmoralizar os sem-reservas: encaminhando-os para o matadouro, onde a direita do capital os aguarda, enquanto afia os facões…
Primo Jonas, tens razão. Quando escrevi o comentário eu não estava pensando especificamente no caso argentino, e sim em uma formulação mais genérica. Então me parece mais correto falar não em crise da economia liberal, e sim em crise das instituições do capitalismo. Mas uma coisa é certa: o fracasso do modelo vigente perdura, e a esquerda se agarra ao modelo em decadência. Daí sobra para os “radicais” de direita a crítica. No Brasil me parece que é este o caso também.
Ulisses, quem seriam os “sem-reservas”?
RESPOSTA a PH
Os condenados da terra, aka proletários…
A cotada para ser ministra do Exterior de Milei, Diana Mondino falou que a Argentina não vai interagir com Brasil e China. Quanto tempo será que o mandato dessa figura grotesca chamada Javier Milei durará?
Marinho,
Teatro pro público. Os políticos podem ficar sem se falar e fazer esse teatro pra sua plateia. Por trás do palco é ‘business as usual’. Houve diminuição de relação econômica e comercial do Brasil com a China durante o governo Bolsonaro?